STJ autoriza cultivo e comercialização de cânhamo industrial para fins medicinais e farmacêuticos
Publicado em 30-11-2024
No julgamento do Recurso Especial 2024250-PR, o STJ decidiu, no âmbito de um Incidente de Assunção de Competência (IAC), que o cânhamo industrial, com teor de THC inferior a 0,3%, não deve ser tratado como substância psicotrópica e, portanto, não está sujeito à proibição prevista na legislação antidrogas do Brasil.
Isso porque, embora o cânhamo industrial e a maconha sejam derivados da planta cannabis sativa, o cânhamo apresenta baixos níveis de THC (o principal composto psicotrópico da planta) e altas concentrações de canabidiol (CBD), um componente não psicoativo utilizado em tratamentos médicos. Com THC abaixo de 0,3%, o cânhamo é incapaz de produzir efeitos psicotrópicos, destacando-se por seu potencial medicinal e industrial.
O acórdão, relatado pela ministra Regina Helena Costa, permite a concessão de licenças sanitárias para o plantio, cultivo, industrialização e comercialização do cânhamo industrial, exclusivamente para fins medicinais e farmacêuticos, condicionada ao cumprimento das regulamentações, que deverão ser estabelecidas pela ANVISA e pela União no prazo de 06 meses.
As normas devem contemplar mecanismos rigorosos para evitar desvios ou usos indevidos, como rastreabilidade genética, restrições de cultivo a determinadas áreas e a exigência de condições específicas, como plantio indoor. Também está prevista a avaliação da idoneidade das empresas envolvidas, incluindo a regularidade fiscal e a ausência de antecedentes criminais dos responsáveis.
A decisão foi fundamentada na Convenção Única sobre Entorpecentes e na legislação nacional antidrogas, que permitem ao Estado brasileiro implementar políticas públicas de controle sobre todas as variedades de cannabis sativa, incluindo o cânhamo industrial. O colegiado destacou que o Poder Judiciário não possui competência para deliberar sobre usos industriais não medicinais, como em alimentos ou têxteis, área que depende de políticas públicas elaboradas pelo Legislativo.
O julgamento incluiu uma ampla audiência pública em abril de 2024 para ouvir especialistas de diferentes áreas. O caso foi iniciado por demanda da empresa DNA Soluções em Biotecnologia, que buscava autorização para importar e cultivar cânhamo com até 0,3% de THC. A empresa argumentou que variedades com baixo teor dessa substância não possuem propriedades psicotrópicas e que o cultivo nacional reduziria os elevados custos de medicamentos à base de cannabis.
A empresa também apontou a contradição entre a permissão para importação de extrato de canabidiol (CBD) por empresas e a proibição de cultivo doméstico da planta. Alegou, ainda, que a questão deveria ser regulada pelo Ministério da Agricultura, e não exclusivamente pela ANVISA. O Ministério Público Federal (MPF) se posicionou favoravelmente à demanda.
Ressalta-se que o caso não versa sobre a descriminalização da maconha, o cultivo para uso recreativo ou o manejo doméstico por pessoas físicas. O debate está restrito ao direito à saúde e às necessidades da indústria farmacêutica.
Em seu voto, a Ministra citou que o Brasil está defasado em relação à regulamentação de praticamente todo o mundo, visto que o uso terapêutico da cannabis é consentido em vários países. Nesse sentido, propôs a fixação das seguintes teses:
“I - Nos termos dos arts. 1º, parágrafo único, e 2º, caput, da Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas), não pode ser considerado proscrito o cânhamo industrial, variedade da Cannabis com teor de THC inferior a 0,3%, porquanto inapto à produção de drogas, assim entendidas substâncias psicotrópicas capazes de causar dependência;
II - De acordo com a Convenção Única sobre Entorpecentes (Decreto n. 54.216/1964) e a Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas), compete ao Estado brasileiro estabelecer a política pública atinente ao manejo e ao controle de todas as variedades da Cannabis, inclusive o cânhamo industrial, não havendo, atualmente, previsão legal e regulamentar que autorize seu emprego para fins industriais distintos dos medicinais e/ou farmacêuticos, circunstância que impede a atuação do Poder Judiciário;
III - À vista da disciplina normativa para os usos médicos e/ou farmacêuticos da cannabis, as normas expedidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA (Portaria SVS/MS n. 344/1998 e RDC n. 327/2019) proibindo a importação de sementes e o manejo doméstico da planta devem ser interpretadas de acordo com as disposições da Lei nº 11.343/2006, não alcançando, em consequência, a variedade cânhamo industrial, cujo teor de THC é inferior a 0,3%;
IV - É lícita a concessão de autorização sanitária para plantio, cultivo, industrialização e comercialização do cânhamo industrial por pessoas jurídicas, para fins exclusivamente medicinais e/ou farmacêuticos atrelados à proteção do direito à saúde, observada a regulamentação a ser editada pela ANVISA e pela União, no âmbito de suas respectivas atribuições, no prazo de seis meses;
V - Incumbe à ANVISA e à União, no exercício da discricionariedade administrativa, avaliar a adoção de diretrizes destinadas a obstar o desvio ou a destinação indevida das sementes e das plantas (e.g. rastreabilidade genética, restrição do cultivo a determinadas áreas, eventual necessidade de plantio indoor ou limitação quantitativa de produção nacional), bem como para garantir a idoneidade das pessoas jurídicas habilitadas a exercerem tais atividades (e.g. cadastramento prévio, regularidade fiscal/trabalhista, ausência de anotações criminais dos responsáveis técnicos/administrativos e demais empregados), sem prejuízo de outras medidas para preservar a segurança na respectiva cadeia produtiva e/ou comercial”.
O prazo de 06 meses dado à ANVISA e à União é visto como um desafio, dada a complexidade técnica e política do tema. Enquanto isso, associações de pacientes e empresas do setor aguardam com expectativa a implementação de normas que tragam maior clareza e segurança jurídica para o cultivo e uso do cânhamo industrial.
A equipe do RRR Advogados fica à disposição para maiores esclarecimentos sobre o assunto.
Tiago Souza de Resende
Sócio do RRR Advogados
Fabrícia Vieira Afonso
Advogada do RRR Advogados